sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O dia em que matei Getúlio Vargas


(Originalmente publicado em 30/8/2004)
Eu me preparei para matar o presidente Getúlio Vargas ali pelas 8h30 do último 24 de agosto. Sabia como fazê-lo – com um tiro no coração. E sabia também o que era preciso fazer antes de matá-lo.Dessa vez, tomaria do Repórter Esso a primazia de anunciar ao país a morte de Getúlio.
Só não contava com uma repentina queda de luz no bairro onde moro e a perda de alguns minutos para religar o computador, acessar novamente a internet e escrever o texto que esquecera de salvar.
Entrara no ar pouco minutos depois da meia-noite. E avisara com antecedência aos freqüentadores do meu blog que ficaria no ar durante 24 horas com notícias em tempo real sobre o desfecho trágico da vida do homem que mais tempo permaneceu no poder entre nós.
A idéia me ocorrera na noite da quinta-feira, dia 19, quando lia um livro sobre Getúlio: e se a internet existisse em agosto de 1954? E se meu blog já existisse? O que teria feito? – pensei.
Gostaria de ter feito mais ou menos como fiz 50 anos depois:
"24/08/1954 - 00:25 – Faz calor no Rio
Nas noites e madrugadas de agosto, a temperatura costuma ser amena no Rio de Janeiro. Mas nesta ela parece particularmente quente. Passa da meia-noite, já é terça-feira, dia 24 de agosto de 1954. As luzes continuam acesas na maioria das casas e no Palácio do Catete, onde vive e despacha o presidente da República, Getúlio Vargas.
E os rádios... Ah, sim. Muitos rádios estão ligados, com os ouvintes atentos ao noticiário inflamado, desde o assassinato no último dia 5, do major-aviador Rubens Vaz. Atiraram para matar Carlos Lacerda, o mais feroz adversário de Getúlio. O major-aviador, que lhe dava proteção, foi morto com dois tiros. Lacerda escapou com um leve ferimento no pé.
O caso se tornou conhecido como o "Atentado da rua Tonelero". É nessa rua que mora Lacerda. Getúlio sofre forte pressão política e militar para que renuncie ao cargo. O chefe de sua segurança, Gregório Fortunato, está preso na Base Aérea do Galeão acusado de ter encomendado o crime.
24/08/1954 - 00:40 – Generais reunidos
Está em curso uma reunião de generais no Ministério da Guerra. Eles discutem qual deverá ser a posição definitiva do Exército, depois que um numeroso grupo de brigadeiros assinou, anteontem, uma nota pedindo a renúncia do presidente da República. A Aeronáutica é a mais inflamada das armas, desde o assassinato do major-aviador Rubens Vaz.
Almirantes reunidos ontem na casa de um deles também cobraram que Getúlio renuncie.
Os portões do Catete permaneceram ontem abertos, como costuma acontecer em dias normais. Mas o dia não foi normal. A noite menos ainda – centenas de pessoas pediram aos berros a queda de Getúlio a poucos quarteirões do palácio. Foram mantidas à distância por soldados do Exército. Tudo indica que esta madrugada será a mais anormal das madrugadas da história do Catete. Talvez da história recente do país."
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Tive apenas quatro dias para ler tudo o que foi possível a respeito de Getúlio, além de encomendar artigos a quase três dezenas de pessoas – do ministro José Dirceu ao jornalista Ruy Mesquita, dono de O Estado de S. Paulo; da cientista política Lucia Hippolito ao escritor Millôr Fernandes; do economista Raul Velloso ao senador gaúcho Pedro Simon. Contei com a ajuda da jornalista Atenéia Feijó, amiga de mais de 30 anos. Ela mergulhou no arquivo do jornal O Globo.
Se a idéia era recuar no tempo e contar o que aconteceu no dia 24 de agosto de 1954 como se tivesse acabado de acontecer, os artigos também estariam obrigados a obedecer à mesma lógica. Quer dizer: haveriam de ter sido escritos naquela data.
O primeiro, de Millôr Fernandes, foi postado às 12h10. Àquela altura, multidões choravam a morte de Getúlio. Millôr deu conta de uma carta em papel timbrado da presidência da República que Gilda, uma amiga, teria recebido poucas horas antes:
“Gilda, antes que as forças me desfaleçam, decido com bravura o meu destino. (...) Tenho resistido, dia a dia, hora a hora, no desespero deste amor tardio, mas tudo é inútil. Sem teu amparo, renuncio a mim mesmo. Se nada mais me queres dar, te dou o meu sangue, te ofereço, em holocausto, a minha vida. (...) Era escravo do teu amor, e escravo parto para a vida eterna. (...) Serenamente dou um passo saindo da vida, enquanto a morte entra em nossa história.”
Millôr fez ficção – os autores dos demais artigos fizeram jornalismo. Mas Millôr podia fazer o que quiser àquela altura da vida. E tê-lo escrevendo no blog foi um raro privilégio. A versão amorosa da carta-testamento de Getúlio - embora em momento algum atribuída por Millôr ao presidente que se suicidara - foi o texto que provocou mais comentários entre os freqüentadores do blog. Afinal, quem fora Gilda? Getúlio, de fato, escrevera a carta mencionada por Millôr?
Para narrar as últimas horas da vida de Getúlio e as primeiras do país sem ele, ative-me aos fatos tais como eles estão registrados em jornais e livros. Não caí na tentação de “melhorar a verdade”, como certa vez admitiu que fazia o editor de um jornal popular do Rio.
Getúlio é o personagem mais denso, complexo e fascinante da crônica política brasileira. E sua trajetória parece servir mais a um romance de Garcia Márquez ou de Vargas Llosa do que a uma biografia de Hélio Silva.
O presidente atravessou a madrugada do dia 24 de agosto na companhia de assessores e parentes. Convocou reunião de emergência do seu ministério para discutir o ultimatum dos militares. E ainda dormiu um pouco e fez a barba antes de meter uma bala no coração. Eu, não.
Atravessei a madrugada sozinho. Todos dormiam na minha casa. E às 10h completei 24 horas acordado. Ali pelas 14h, vi moscas voando onde elas nunca existiram. E tentei matá-las com as mãos.
Comecei a matar Getúlio pontualmente às 8h15. Ele acabara de saber que os militares haviam recusado sua proposta de se licenciar temporariamente do cargo. Exigiam a renúncia. Mas o presidente dissera e repetira que só sairia morto do Catete, humilhado jamais. Então:
“O ajudante de ordem viu Getúlio passar em robe de chambre para seu gabinete. Ele trancou-se no gabinete por três ou quatro minutos.
O ajudante-de-ordem e Alzirinha (filha de Getúlio), que, como de hábito estava ao telefone, viram o presidente voltar ao quarto com a mão esquerda dentro do bolso do pijama. Segurava algo. Getúlio trancou-se no quarto sozinho. E desde então permanece sozinho”.
24/08/1954 - 08:25 - ???????????????????
Aconteceu alguma coisa no Palácio do Catete!
24/08/1954 - 08:30 – Choro nas escadas do Catete
Tem gente entrando e saindo às pressas do Palácio do Catete. Um soldado de guarda no palácio viu um ajudante de ordem do presidente Getúlio Vargas descer as escadas chorando para de imediato voltar a subi-las.
24/08/1954 - 08:33 – Ambulância a caminho do Catete
Um enfermeiro do Hospital Souza Aguiar ouviu há pouco de um médico que uma ambulância saiu em disparada com destino ao Catete. A direção do hospital está a par disso. Há muito nervosismo entre os médicos.
24/08/1954 - 08:36 – Sem acesso, sem notícia
As linhas telefônicas do Palácio do Catete estão ocupadas. É impossível ligar de fora para lá."
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Foi entre as 8h15 e as 8h25m que houve uma queda de luz no Lago Sul, em Brasília, e meu computador pifou. Isso atrasou a morte de Getúlio e me deixou nervoso. Eu o mataria às 8h30. Ele, na verdade, morreu alguns minutos depois das 8h. Mas, no dia 24 de agosto de 1954, nenhum jornalista soube logo.
Li que o Repórter Esso teria dado a notícia por volta das 9h. Só me faltava ser furado 50 anos depois pela lembrança da hora em que Heron Domingues, locutor do Repórter Esso, anunciou o suicídio.
A confirmação da morte de Getúlio foi a 32ª notícia que postei no blog. Ao todo, postei 46 em 24 horas – além de 28 artigos. Recebi a maioria dos artigos até a noite do dia 23 – alguns só recebi no próprio dia 24.
Todas as notícias foram escritas minutos ou segundos antes de serem postadas. Talvez tenha sacrificado a qualidade do texto por escrever às pressas. Mas penso que tudo ficou parecendo mais real com eventuais erros e imperfeições.
Teve notícia que deixei incompleta de propósito. E com frases repetidas de propósito. O manejo do tempo foi importante para conferir mais dramaticidade ao relato. Algumas notícias foram ao ar rapidamente, umas atropelando as outras. Em outras ocasiões, deixei intervalos maiores de tempo entre elas.
24/08/1954 - 08:40 – Um tiro. Ouviu-se um tiro
Foi um tiro. Ou melhor: ouviu-se um tiro há pouco no Catete.
Há pouco, não. Há mais de 20 minutos pelo menos.
Foi tudo o que deu para saber até agora.
Até mesmo o tiro ainda não está confirmado.
24/08/1954 - 08:43 – Tem uma ambulância no Catete
As poucas dezenas de pessoas que olhavam há pouco, curiosas, na direção do Catete viram chegar ali uma ambulância.
Os soldados que protegem o palácio estão nervosos. Um deles foi ríspido com uma mulher de meia idade que perguntou pelo presidente.
24/08/1954 - 08:45 – Getúlio está morto
Parece que o presidente Getúlio Vargas está morto.
Sim, o presidente Getúlio Vargas morreu. Ele morreu.
O presidente Getúlio Vargas morreu.
24/08/1954 - 08:50 – Getúlio se suicidou
Alzirinha confirmou para um amigo que o pai morreu. Deu um tiro no coração.
O presidente Getúlio Vargas se suicidou.
24/08/1954 - 08:55 – Deu no Repórter Esso
Em edição extraordinária, o Repórter Esso acabou de anunciar que o presidente Getúlio Vargas se suicidou.
Começa a crescer o número de pessoas nas vizinhanças do Catete. Uma mulher desmaiou e foi carregada por um soldado para os jardins do palácio.
A ambulância está parada lá dentro.
E nesse momento
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Furei o Repórter Esso – e para mim era questão de honra fazê-lo. Mas só agora percebo que noticiei a edição extraordinária do Repórter Esso para que ela conferisse credibilidade ao que eu mesmo noticiara antes – que Getúlio estava morto.
Ninguém duvidava da correção das informações divulgadas pelo Repórter Esso. Seria possível, contudo, que duvidasse de informações postadas em um blog – há 50 anos ou agora. Blog de notícias é coisa recente no Brasil – mesmo nos Estados Unidos é recente.
Tenho um blog desde março último.
Em 37 anos de jornalismo nunca tive tanta liberdade para fazer jornalismo. Ninguém me diz o que posso publicar ou não. E publico tudo que mereça ser publicado. Entre apurar uma notícia e postá-la, gasto poucos minutos.
Estou encantado com a rapidez de poder passar adiante tudo o que sei ou que consigo saber. E com a liberdade que usufruo para isso. Mas confesso também que estou assustado, muito assustado.
A tecla que põe um furo no ar de imediato é vizinha da outra capaz de deletar reputações com igual velocidade – a dos outros e a minha.

(Hoje, 24 de agosto de 2012, faz 58 anos que Getúlio se matou. Se quiser ler o que publiquei no dia 24 de agosto de 2004, acesse A Morte de Getúlio Vargas - Parte 1 e A Morte de Getúlio Vargas - Parte 2 )

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