A favelização dos nossos índios.
Artigo publicado na Folha de São Paulo, intitulado "Questão indígena":
A QUESTÃO indígena no país, quando do julgamento do caso da reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima, foi objeto de um novo ordenamento. Dando ganho de causa a alguns grupos indígenas, o Supremo Tribunal Federal, ao mesmo tempo, estabeleceu um conjunto de diretrizes que deveria passar a orientar o processo de identificação e de demarcação de terras indígenas. Duas questões se impõem aqui: a avaliação do que está acontecendo em Roraima e se essas novas orientações estão ou não sendo efetivamente seguidas pela Funai (Fundação Nacional do Índio). Quando da demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol, ela foi saudada pelos ditos movimentos sociais como uma grande solução, que equacionaria todos os problemas.Vozes mais sensatas já advertiam para os problemas daí decorrentes, como o abandono de populações mestiças e de brancos, deixando indígenas desempregados (edição de 1º deste mês, de "Veja").
No entanto, as vozes da Funai, do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e de ONGs nacionais e estrangeiras foram mais fortes, impondo uma situação que está se traduzindo pelo desamparo dessa região.Apostaram tudo na questão fundiária, como se fosse possível reverter a aculturação e a miscigenação indígenas, de séculos, e os índios pudessem voltar a ter uma vida igual à dos seus antepassados, anterior ao contato com os "brancos". O problema essencial dos indígenas não é fundiário, mas social. Hoje, possuem terras, porém faltam saúde, emprego, agricultura, pontes e estradas. Muitos dos indígenas, antes empregados, vivendo numa sociedade culturalmente mesclada e matrimonialmente miscigenada, migraram para as favelas de Boa Vista. Em vez da volta a uma utopia de uma comunidade originária, observamos o aumento da miséria e o deslocamento para áreas urbanas.
Os agricultores que foram desapropriados não tiveram suas posses e títulos de propriedade reconhecidos. O governo muito alardeou que eles seriam justamente indenizados, mas a realidade é bem outra. Suas terras foram consideradas como "tradicionalmente indígenas", o que significa que o valor da indenização já não se faria pelo valor da terra nua, mas somente pelas benfeitorias. Ficaram sem terras e sem dinheiro. As questões mais urgentes das populações indígenas dizem respeito à saúde, à educação, ao trabalho e à moradia, em condições que lhes permitam uma plena integração à sociedade. Necessitam de igualdade de oportunidades. Seu problema é social, exigindo políticas públicas adequadas, sem as quais tudo ficará reduzido a uma questão meramente fundiária, que já exibe sua falta de sustentação.
Contudo, a Funai e os ditos movimentos sociais não extraem nenhuma lição do que está acontecendo, repetindo as mesmas fórmulas ultrapassadas e, mais do que isso, desconsiderando a súmula do STF que disciplina a política indigenista. Por exemplo, a Funai, com o apoio de ONGs nacionais e internacionais, não reconhece o "fato indígena", a saber, a ocupação efetiva dos indígenas em determinado território quando da promulgação da Constituição de 1988.Continuam identificando terras indígenas pelo país afora, a partir de um certo conceito de ocupação imemorial, em regiões que, de há muito, não são mais indígenas. Se assim não fosse, Rio de Janeiro e Salvador deveriam ser as primeiras terras indígenas a serem demarcadas.
Tampouco é respeitada a decisão do STF que não mais permite a ampliação de terras indígenas, pois as existentes, uma vez demarcadas, indiretamente também demarcaram as áreas limítrofes como não indígenas. Eventuais problemas demográficos remetem igualmente a problemas sociais, que deveriam ser enfrentados por políticas públicas, como a de compra de terras pelos governos estadual e federal. Os agricultores não podem ser as vítimas nem os responsáveis pela miopia dos órgãos públicos. Urge que as decisões do STF sejam respeitadas, sob pena de o Brasil continuar refém de problemas que só se multiplicam, produzindo insegurança jurídica e abandonando socialmente os indígenas. Uma súmula vinculante é cada vez mais necessária.
KÁTIA ABREU (DEM-TO), 49, senadora e presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil).
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