quinta-feira, 30 de junho de 2016

O fracasso da “Cidadã”

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PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

Quando Ulysses Guimarães ergueu aquele livretinho no Congresso Nacional na noite do dia 05 de outubro de 1988, achou-se finalmente que o Brasil estava entrando nos trilhos da modernidade e saindo definitivamente de seu passado de quarteladas políticas e heróis sebastianistas; que, ao menos no plano institucional, poderíamos nos ombrear (ou ao menos chegar perto disso) com as nações desenvolvidas.
Mas, quase 30 anos passados, o que vemos? A “cidadã”, como cognominada à época de sua promulgação, tornou-se uma colcha de retalhos aberrante. Um retumbante fracasso. Para comprovar a assertiva, basta fazer uma rápida comparação com a realidade quotidiana: o que se acha de um bem de consumo durável (v.g. imóvel) do qual se tem propriedade há 25 anos e que teve de passar por setenta e três consertos? Bom investimento seguramente não foi.
E qual a(s) razão(ões) para o fracasso da Constituição brasileira? Poderíamos enumerar uma série, mas, de plano, o fator a destacar é o de ser excessivamente analítica. Entende-se que o constituinte pátrio buscou inspiração na Constituição portuguesa de 1976 e nas lições do jurista português Gomes Canotilho, visando um maior destaque ao dirigismo estatal e à efetivação dos direitos sociais. Entretanto, nessa transferência das diretrizes constitucionais lusitanas, pecou-se na técnica legislativa criando um “monstrengo” de 250 artigos, parte razoável dos quais com um número exagerado incisos e parágrafos. Trocando em miúdos: muito do que se positivou na Constituição Federal caberia perfeitamente em legislação ordinária, ou na pior das hipóteses, em legislação complementar. Vulgarizou-se a Constituição.
Como diz a sabedoria popular, “o que começa mal, tende a terminar da mesma maneira”. E com a Constituição da República Federativa do Brasil não tem sido diferente. Como consequência quase lógica da colocação de legislação restritiva, quase de caráter regulamentar, ao lado dos larguíssimos princípios e fundamentos constitucionais só poderia redundar no constante choque entre esses e nos instantes recursos ao “bombeiro” Supremo Tribunal Federal, que nesses últimos 25 anos adquiriu mais importância que nem o pensamento mais otimista imaginaria nos outros cem anos de República.
E para se corrigir as incongruências da Constituição, o que se fez (faz)? Emendas! O procedimento de emendas constitucionais, que nas grandes nações ocidentais possui um rigor draconiano, o nosso “presidencialismo de coalizão” transmutou em algo quase tão corriqueiro quanto à edição de instruções normativas. Tornou-se anedota entre os juristas o fato de que a CF é um “periódico”. E o “monstro” cada vez torna-se maior. E o poder judiciário assume um protagonismo entre os poderes da República decorrente dessa completa falta de técnica legislativa, começada em 1988 e à qual não se consegue frear.
O constituinte nacional se esquece do mais basilar preceito que deve nortear os elaboradores de uma legislação de tão lata abrangência e incidência: a generalidade. Constituições não são feitas para determinar percentuais ou vinculações estritas. São feitas para, além da óbvia organização e divisão dos poderes, para dispor sobre princípios gerais de maneira concisa, mas conteúdo de ampla incidência. Um balizador, uma diretriz ao legislador ordinário para, este sim, fazer a regulação legal mais precisa. O constituinte brasileiro parece que esqueceu a Constituição positivada mais antiga do mundo: a norte-americana. Os americanos promulgaram sua carta em 1787 e só a emendaram vinte e sete vezes. E a emendaram para instituir princípios norteadores, gerais, tais como a liberdade de expressão (1ª emenda), o direito à legítima defesa (2ª emenda) e a abolição da escravatura (13ª emenda). Façam agora a comaração com a nossa Carta da República e sua eterna crise de identidade e mudanças quase que semestrais.
O acréscimo excessivo e descriterioso de normas à Constituição em nada contribui para sua efetividade; ao contrário torna-a uma codificação engessada e problemática. A quantidade de processos existentes no Supremo Tribunal Federal é totalmente desarrazoada, mesmo com o advento do STJ para “socorrê-lo” e tomar para si as lides infraconstitucionais (STJ, aliás, que mesmo tendo menos de três décadas de existência, já padece do mesmo mal do STF de congestionamento processual). Das nossas setenta e três emendas constitucionais, grande maioria versa sobre questões cujo melhor cabimento são as legislações infraconstitucionais (tais como os “códigos”, acréscimos inúteis que em nada alteram a interpretação do texto originário ou correções da má técnica legislativa originária que poderiam ser perfeitamente pacificadas (ou ao menos terem um entendimento dominante) pela doutrina e jurisprudência.
Não há como novamente não beber da fonte do direito comparado. Voltemos aos Estados Unidos e somemos a França a esse estudo. A Constituição norte-americana, apenas vinte e sete vezes emendada como dito supra, versa apenas sobre os poderes da República (artigos I a III), sobre os Estados-membros (artigo IV), o procedimento de emenda à própria Constituição (artigo V), débitos, supremacia da União e juramentos (artigo VI) e garantias individuais (“bill of rights” – petição de direitos -, emendas I a X). Além disso, apenas positiva questões de larga incidência e influência na vida de todos os cidadãos americanos, como os limites do poder judiciário (emenda XI). Já a França, que comunga do nosso sistema romano-germânico e exerceu enorme influência sobre nossos juristas do século XIX e primeira metade do século XX, possui uma Carta Constitucional com apenas 89 artigos (no Brasil, apenas o texto de 1891 conseguiu se aproximar desse número, com apenas 91 artigos), dispostos em dezessete títulos, a saber: da soberania; o presidente da República; o governo; o parlamento; das relações entre o parlamento e o governo; dos tratados e acordos internacionais; o Conselho Constitucional; da autoridade judiciária; a Alta (rectius: Suprema) Corte; da responsabilidade penal dos membros do governo; o Conselho econômico, social e ambiental; o Defensor dos direitos (equivalente francês do Procurador Geral da República); das coletividades territoriais; disposições transitórias relativas à Nova Caledônia; da francofonia e dos acordos de associação; da União Européia; da revisão.
A “gigantesca” (este bem poderia ser o epíteto da nossa Carta Magna) peca por um intervencionismo indecoroso. Nossos constituintes dos anos 1980 acharam que colocar tudo num pedaço da papel transformaria a tudo e satisfaria a todos da noite para o dia. Colocar centenas de direitos num documento mágico não os torna realidade. Efetividade não vem da tinta da caneta; vem da racionalidade, da inteligência, do “pé no chão”, da boa técnica legislativa. Em matéria de legislação, muito ajuda quem não atrapalha com a criação de dispositivos inúteis. E nisso o saldo dos nossos parlamentares está bem negativo… Isso sem falar em juízes de primeira instância dando uma verdadeira "surra" jurídica nos magistrados da última instância que legislam lastreados na norma política, num verdadeiro desprezo a norma jurídica.

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